Carolina Maria de Jesus: eterna

 Completando 60 anos de publicação do livro Quarto de Despejo, obra de escritora segue relevante e atual.

Por Vicente Costa
Bibliotecário e Analista de Literatura

dica-literatura-carolina-de-jesus
Carolina Maria de Jesus autografa seu livro Quarto de Despejo, em 1960.

“A Carolina inaugura uma linha matricial de mulheres negras escritoras na literatura brasileira”. Estas palavras são da escritora Conceição Evaristo sobre Carolina Maria de Jesus, escritora fundamental da história literária deste país, que se estivesse viva atualmente teria 106 anos e estaria comemorando 60 anos da primeira publicação de sua icônica obra, Quarto de Despejo: diário de uma favelada.

Nascida em 1914 na cidade de Sacramento, interior de Minas Gerais, Carolina teve acesso aos estudos apenas aos dois primeiros anos do primário, porém foi o suficiente para aflorar seu encantamento pelos livros, e desenvolvendo sua leitura e escrita praticamente sozinha. Sua escrita se torna mais recorrente no final da década de 1940, quando migrou para a cidade de São Paulo, mais especificamente para a favela Canindé – que era localizada nas margens do Rio Tietê e sofreu remoção nos idos da década de 1960.

Vivendo na favela com seus três filhos, Carolina, uma mulher preta e mãe solo, sobrevivia trabalhando como catadora de papel para juntar dinheiro e prover a alimentação de sua família. Por característica reservada, pelo tempo que dispunha a escrever seu diário, o fato de ler bem e conseguir interpretar muitas informações que as pessoas ao seu redor não conseguiam, sofria preconceitos e agressões verbais dos moradores – importante contextualização é que nesse período, pouco mais de 50 anos após o fim legal do período escravagista, a população negra, sobretudo moradora de favela, não tinha acesso pleno a educação e demais serviços básicos.

Carolina em sua trajetória de vida, além de catadora de papel, foi lavradora e benzedeira – conhecido também como “raizeira” em algumas regiões. Expressou seu processo criativo em diversos formatos, foi dramaturga, atriz, poeta, compositora e sambista. A escritora produziu cerca de 5 mil páginas manuscritas em toda sua obra. Seu relato como testemunha ocular de seu tempo expôs a miséria e angústia cotidiana, particular do lugar onde vivia, mas que se configura na realidade das favelas do país.

A obra de Carolina foi descoberta casualmente por Audálio Dantas, quando o jornalista esteve na favela do Canindé para uma reportagem sobre a comunidade, em 1958. Ao ter acesso aos registros, o jornalista que também buscava retratar histórias daquele lugar no jornal em que trabalhava, percebeu que com sua escrita jamais conseguiria retratar aquela realidade com força descritiva como Carolina fazia, pois não vivia ou sentia as situações próprias daquela situação a qual Carolina estava imersa. Podemos perceber que a escritora há mais de sessenta anos, já praticava em seus registros o conceito de lugar de fala, ou seja a legitimidade para falar de assuntos sem mediação externa, protagonizando sua própria história e questões.

Este encontro com o jornalista resultou nas primeiras publicações de Carolina, ainda em 1958 em jornais e revistas da cidade de São Paulo. Com a repercussão dos textos, que no ano de 1959 também foram publicados em versão traduzida ao idioma espanhol, surgiu a ideia da publicação do livro. Editado por Audálio, que fez questão de manter o formato original da criação literária da autora, tanto na ortografia quanto na sintaxe das palavras. O título da publicação refere-se a uma metáfora da autora em relação entre o luxo das cidades – que na época passavam por grandes reformas urbanísticas – e a precariedade das favelas:

“(…) quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita com seus lustres de cristais, seus tapetes de viludos, almofadas de sitim. E quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo”[sic]. (Trecho extraído do livro Quarto de Despejo, 2014. 10. ed.).

O livro Quarto de despejo, publicado em 1960, atingiu sucesso comercial tão logo foram disponibilizadas suas primeiras tiragens, vendendo 10 mil exemplares em três dias. Em seis meses alcançou a marca de 100 mil livros comercializados, sendo publicado em mais de 40 países e traduzido para 14 idiomas. A escrita de Carolina foi amplamente propagada em países como Estados Unidos e França. Contudo, no Brasil, a figura e obra da escritora, ainda hoje não é tão difundida quanto sua relevância nos sugere, sua produção é rica em recursos linguísticos como figuras de linguagem e figuras de palavras, como expressado na sinestesia de versos e cores em que a autora retrata a fome como um assombro amarelo e a amargura roxa dos corações dos favelados. Ou a metáfora de que gostaria de retirar um pedaço do céu da noite para pôr em um vestido. São inúmeros os artifícios estilísticos utilizados por Carolina em seu livro inicial, além da pertinência de serem fatos reais sentidos pela escritora e não ficcionados. Seus registros a chancelam seu valor único e assinatura de sua expressão literária em nossa história.

Além de Quarto de Despejo, foram publicadas 10 obras literárias de Carolina, das quais destacam-se na: Casa de Alvenaria: diário de uma ex-favelada (1961); Pedaços de Fome (1963); Diário de Bitita (1986 – publicado postumamente).

Carolina Maria de Jesus: uma referência

O legado de Carolina perpassa os tempos e dialoga com importantes artistas contemporâneos da literatura, como figura referencial e presente.

Conceição Evaristo, em participação no evento FLUP Digital: Painel Online “A Revolução Carolina” – edição 2020 da Festa Literária das Periferias que neste ano em virtude da pandemia ocorre pela internet e homenageia a escritora, afirmou que poderíamos considerar Carolina Maria de Jesus como a primeira escritora brasileira que escreve a partir de uma experiência pessoal e vivência para criar a sua obra. Como o conceito de escrevivência, que Conceição utiliza para expressar a escrita que nasce do cotidiano e das lembranças, sobretudo da mulher preta.

Para Ferréz, expoente escritor da literatura marginal e periférica, em ciclo de conversas sobre literatura na Biblioteca Mario de Andrade em 2009, atribuiu a Carolina o fato de ser primeira autora marginal, com o destaque de ter sua obra alcançado lugares além das dimensões da favela onde viveu e evidenciando sua superação e trajetória como mulher negra, favelada e catadora de papelão.

O poeta Sergio Vaz, reconhecido autor periférico e criador do importante Sarau da Cooperifa em São Paulo, ressalta a voz de Carolina ao concluir que sua fala pode ser ferramenta de mudança de uma realidade retratada há 60 anos que atualmente persiste em muitas localidades no país.

A escritora Eliana Alves Cruz – autora dos romances Água de Barrela e O Crime do Cais do Valongo vencedora da primeira edição do Prêmio Literário Oliveira Silveira, oferecido pela Fundação Cultural Palmares em 2015 – destacou recentemente em uma rede social que Carolina Maria de Jesus foi a primeira escritora brasileira a vender 1 milhão de livros. Pretíssima! ressalta em postagem.

Tom Farias, jornalista e escritor com 12 livros na carreira, autor de Carolina: uma bibliografia (Ed. Malê, 2018) que remonta à infância de Bitita – como era conhecida quando era criança em Sacramento, Minas Gerais – até a fase adulta, as dificuldades sofridas por Carolina ao longo de sua trajetória e suas conquistas. Tom destaca, em entrevista a Tribuna de Minas em 2019, o fato de que Carolina sobreviveu ao sistema da época por que soube manipulá-lo e afirma que sua trajetória até o lançamento de Quarto de Despejo, foi uma revolução.

Para Cristiane Sobral – escritora, poeta e dramaturga (estudou teatro no Sesc Rio em 1989), autora de livros como Não Vou Mais Lavar os Pratos e Terra Negra, entre outros – aponta também o fato da difusão da escritora no mundo a fora inversamente proporcional ao que ocorre no Brasil e contesta o motivo de setores literários não considerarem obras de Carolina, que sobretudo denuncia questões como racismo, não sejam consideradas literatura.

Sob perspectiva semelhante, MC Martina – poeta e fundadora do coletivo Poetas Favelados e do evento de batalhas poéticas Slam Laje que acontece no conjunto de favelas do Complexo do Alemão, em reportagem ao jornal O Globo, questiona o fato da escritora não ser tão conhecida como outros nomes recorrentes na literatura brasileira e relata que seu sonho é chegar em uma escola pública e todos conhecerem Carolina Maria de Jesus.

Conheça mais sobre a vida e a obra da autora

Selecionei algumas informações e materiais disponíveis na internet que nos permitem conhecer um pouco mais sobre esta grande artista brasileira, confira a seguir:

  • Como mencionado na matéria, Carolina foi uma sambista e compositora. Em 1961 ela lançou um disco de também intitulado Quarto de Despejo. O repertório, baseado em sambas e marchinhas é todo autoral e interpretado por Carolina. Foi disponibilizado em virtude do seu centenário em 2014 pelo Instituto Moreira Sales e pode ser ouvido na integra através do link: https://radiobatuta.com.br/selecao/carolina-maria-de-jesus-canta/;
  • A edição 2020 Festa Literária das Periferias (FLUP) homenageia a Carolina Maria de Jesus com uma série de atividades voltadas a refletir a obra da escritora. Intitulada Uma revolução chamada Carolina, a programação terá ciclo de debates digitais entre os meses de maio a agosto, sempre às terças, às 19h através de lives no canal da FLUP no youtube. Os vídeos ficam disponíveis para acesso no canal após a exibição. Link: https://www.youtube.com/user/FluppRJ
  • Relato de Vera Eunice de Jesus, filha de Carolina Maria de Jesus, mantenedora e disseminadora do legado de vida e obra de sua mãe, em participação na Bienal Internacional do Livro de São Paulo 2018 no Espaço BiblioSesc. Link: https://www.youtube.com/watch?v=_N2x7ZBs2uU;
  • Edição especial do programa de televisão Caso Verdade – Quarto de Despejo de 1983, que retratou a obra de Carolina Maria de Jesus, interpretada pela saudosa atriz Ruth de Souza. Link: https://www.youtube.com/watch?v=Dbw3csCl9lo
  • Matéria recente sobre a Coleção Carolina Maria de Jesus mantida na Biblioteca Nacional. Composta por 14 cadernos, 22 fotos e 10 microfilmes custodiados nas Divisões de Manuscritos e Iconografia. Os materiais são datados de 1955 a 1959. A reportagem disponibiliza acesso digital a um caderno manuscrito da autora. Link: https://www.bn.gov.br/acontece/noticias/2020/04/colecao-carolina-maria-jesus-biblioteca-nacional;
  • Composição Rosa do Morro do Rapper Inquérito, com participação da Poeta Roberta Estrela D’alva que recita letra de Carolina Maria de Jesus no começo e ao longo da canção. Link: https://www.youtube.com/watch?v=3BhrBqgvIKs (disponível também em aplicativos de streaming de música);
  • Curta metragem dirigido por Luís Antônio Pilar, narra o encontro imaginário entre João Cândido, líder da Revolta da Chibata, e a catadora de papel e escritora Carolina Maria de Jesus, autora do livro Quarto de Despejo, em pleno centro do Rio de Janeiro. Carolina Maria é interpretada pela atriz Dirce Thomas e
    João Candido é interpretado pelo saudoso ator Zózimo Bulbul. Link: https://www.youtube.com/watch?v=73cWnIOfZXM&t=30s.
  • O espetáculo Carolina, O luxo do lixo, de Wilson Rabelo, que nos apresenta a figura de Carolina Maria de Jesus tal qual um griot, relembrando sua trajetória assim como a seus ancestrais e ilustrando seus passos até a sua chegada em São Paulo. Assista na íntegra: https://www.youtube.com/watch?v=em5TP2suObk
  • Curta metragem Carolina (2003) dirigido por Jeferson De, conta com Zezé Motta do papel de Carolina Maria de Jesus. Vera Eunice, filha de Carolina Maria de Jesus também participa do projeto.

Outras Notícias

Ver todas as notícias
Projeto Consciências busca combater o racismo com programação multilinguagem

Sesc Tijuca recebe inscrições para curso preparatório gratuito para mestrado e doutorado a pessoas negras e periféricas

Veja mais
O Corpo Negro : Atividades Formativas

O Corpo Negro: inscrições abertas para as atividades formativas

Veja mais
sesc rj flamengo

Sesc RJ Flamengo se despede da Superliga em terceiro lugar

Veja mais
Mesa Brasil Sesc RJ

Mesa Brasil Sesc RJ recebe doação de 22 toneladas de biscoito da Mondelez para municípios afetados pelas chuvas no estado

Veja mais