mulheres plurais

Mulheres plurais na literatura – uma perspectiva histórica

Um quarto todo seu. Para transformar seus pensamentos, reflexões e desejos em textos. Para ser livre nem que seja no papel. A literatura feita por mulheres passou por grandes obstáculos, assim como toda a existência feminina. Seja no século passado, vista como uma forma de transgressão, seja hoje, ainda pouco valorizada, a história das mulheres na literatura percorreu um longo caminho.

Por Angelica Eichner, Claudia Araújo e Thaiane Almeida.

George Sand, George Eliot e Rian são nomes que compartilham um mesmo objetivo: proteger artistas para driblar as dificuldades em publicar suas obras. Os pseudônimos adotados por Amantine Dupin, Mary Ann Evans e Nair de Teffé foram o mecanismo encontrado para que as artistas pudessem expressar-se para além do privado. O espaço restrito de cuidados com o lar e a família era pouco para estas mulheres, que foram importantes figuras na luta contra as normas patriarcais vigentes.

A chegada da Família Real Portuguesa no Brasil exigiu a criação de estruturas administrativas que atendessem as necessidades do império, logo foram criados A Fábrica de Pólvora, o Banco do Brasil e o periódico A Gazeta do Rio de Janeiro, por exemplo. A criação de um jornal totalmente brasileiro possibilitou o início da emancipação intelectual feminina, pois mulheres letradas atuaram redigindo colunas para os mesmos.  Em 1867 surgem as primeiras escolas particulares para meninas, e em 1880, com a expansão para o ensino público, a possibilidade de participação feminina na vida pública da sociedade se amplia. Ainda assim, apenas meninas brancas e da alta sociedade tinham a oportunidade de estar nestas instituições. Anterior a isto, a condição era precária na educação de meninas, e quando muito, era exclusivamente em casa e focada nas atividades domésticas.

A existência de pseudônimos masculinos para autorias femininas traz à tona uma problemática, que é a construção de uma linha do tempo histórica da produção literária feminina. Considera-se Cristina de Pisano, italiana nascida em 1364, a primeira mulher a publicar um livro na Europa. Devido à influência de seu pai, médico e astrólogo renomado, Cristina teve a oportunidade e o incentivo para estudar. Seu pai foi nomeado médico, astrólogo e alquimista do Rei pela Corte de Charles V da França. A vida na Corte possibilitou que Cristina desenvolvesse ainda mais seus interesses. Já era relativamente conhecida quando seu pai e seu marido morreram, e decidiu dedicar-se exclusivamente à literatura a fim de  garantir o sustento de seus 3 filhos. Escrevia baladas de amor, mas foi O livro da cidade das mulheres, publicado em 1405, que rendeu à Cristina sua notoriedade e o marco de ser a primeira mulher na Europa a sustentar-se apenas com a escrita. Este livro é considerado o primeiro livro feminista da história, com a defesa das mulheres, a luta objetiva contra a misoginia e questões sobre as diferenças entre gêneros. Para além desses temas, Cristina também defendia as “femmes soles”, assim chamadas as mulheres mães que, além de criar os filhos e executar tarefas domésticas, também trabalhavam fora, em comércios e negócios, e eram responsáveis pelas finanças da casa. Ainda na Europa, outros nomes surgiram como Jane Austen e as irmãs Brontë. Inclusive, Charlotte, Emily e Anne Brontë utilizavam pseudônimos masculinos para publicar seus textos. No Brasil, Nísia Floresta se destaca com a primeira publicação feminista brasileira, o livro Direitos das mulheres e injustiça dos homens, publicado em 1832. Maria Firmina dos Reis apresenta Úrsula em 1859, sendo o primeiro romance a ser publicado no Brasil.

O século XX foi o ponto de virada para a literatura de autoria feminina. Virginia Woolf foi revolucionária, escrevendo tanto no campo teórico quanto na ficção. Seus títulos são até hoje lidos e estudados, e contribuíram para o feminismo, especialmente para os temas que atravessavam as questões lésbicas. Agatha Christie fugiu de todos os estereótipos e escreveu dezenas de títulos de aventura e mistério, sendo conhecida como a “Rainha do crime”. Seus romances policiais são constantemente reeditados e adaptados para o cinema e televisão. 

No Brasil, Cecília Meireles, Clarice Lispector, Cora Coralina, Raquel de Queiroz, dentre tantas outras, publicaram seus romances, poemas e ensaios, marcados pelas experimentações na escrita e personagens existencialistas. Com O quarto de despejo de 1960, Carolina Maria de Jesus mostra ao Brasil o cotidiano de mulher, preta, mãe solo, trabalhadora em meio à pobreza e a todo tipo de preconceito. Diversas vezes entrando em debates por conta de sua escrita, por não seguir a norma padrão, Carolina permanece sendo referência na literatura e estudos sociais, pois ao narrar seu universo pessoal, também dá visibilidade às questões da favela e do contexto social da mulher marginalizada.

Saí indisposta, com vontade de deitar. Mas, o pobre não repousa. Não tem o previlegio de gosar descanço. Eu estava nervosa interiormente, ia maldizendo a sorte. Catei dois sacos de papel. Depois retornei, catei uns ferros, uma latas, e lenha.

(Trecho de O quarto de despejo, 1960)

A partir das décadas de 1960 e 1970, com influência dos movimentos feministas, iniciou-se também um processo de desconstrução dos padrões literários. As mulheres, até então diminuídas e apagadas da história da literatura, passaram a atuar mais no campo literário e,através de suas obras, questionarem os discursos machistas e misóginos dominantes. A urgência em determinados debates encorajou escritoras pretas a compartilharem suas narrativas baseadas em suas vivências, que incluíam o racismo e as questões relativas ao machismo. Estas autoras contribuíram com suas obras para exposição da realidade da mulher preta do século XX e XXI e para o reconhecimento do feminismo preto, trazendo luz às questões relacionadas às suas próprias existências. Escritoras e ativistas como Ângela Davis, membra do partido comunista americano e integrante dos Panteras Negras, pautou diversos debates sobre a luta antirracista, sendo referência até hoje. Outras figuras importantes como Patricia Hill Collins, bell hooks e Audre Lorde trataram em suas obras a interseccionalidade entre raça, capitalismo e gênero e sua capacidade de produzir e perpetuar sistemas de opressão e dominação de classe. Maya Angelou, além de escritora, foi atriz, cantora, bailarina, recebeu 3 indicações ao Grammy e 1 para o Prêmio Pulitzer. Foi amiga de Martin Luther King e na promoção dos direitos civis. 

Lélia Gonzalez, representante do ativismo preto brasileiro, abordou em seus escritos as condições de exploração e opressão dos negros e das mulheres. Atuante do movimento feminista preto, seu trabalho serviu de referência a Ângela Davis. Sueli Carneiro, escritora e ativista do movimento antirracista, participou do processo de redemocratização do Brasil, e fundou em 1983 o Conselho Estadual da Condição Feminina, em são Paulo. Anos mais tarde, em 1988, fundou o  GELEDÉS – Instituto da Mulher Negra. Trata em seus textos sobre a violência política de gênero e raça, e já foi homenageada e premiada nacional e internacionalmente.

A voz de minha filha

recolhe todas as nossas vozes

recolhe em si

as vozes mudas caladas

engasgadas nas gargantas.

A voz de minha filha

recolhe em si

a fala e o ato.

O ontem – o hoje – o agora.

Na voz de minha filha

se fará ouvir a ressonância

O eco da vida-liberdade.

(Poemas de recordação e outros movimentos, p. 10-11).

O trecho do poema de Conceição Evaristo exemplifica a trajetória do ser feminino ao longo dos séculos e seus direitos conquistados a sangue, suor e sacrifício, numa sociedade essencialmente patriarcal. De um lugar inóspito e de resignação, Conceição projeta a mulher e suas ramificações em patamares contínuos de entendimento de seu valor e pertencimento enquanto parte ativa de sua sociedade. Em toda a literatura, é nítido que o papel da mulher é visto em constante processo, dada as circunstâncias de cada evolução da sociedade. Essa mesma evolução pode ser vista no livro Hibisco Roxo, da Chimamanda Ngozi Adichie, trazendo à luz da reflexão a noção de identidade da personagem Kambili diante da família que segue preceitos do catolicismo, renegando suas raízes de origem Igbo, grupo étnico pertencente a Nigéria. Amara Moira é escritora, professora de literatura e ativista. É a primeira travesti a tornar-se doutora na Universidade Estadual de Campinas usando seu nome social. Em sua obra, relata em primeira pessoa as experiências que fizeram de seu corpo símbolo de resistência. A percepção do lugar de fala, questões raciais e de gênero que Djamila Ribeiro aborda em seus livros norteiam a discussão nos dias atuais sobre a temática e a percepção de quem deve e pode representar a voz feminina. 

Seja enquanto personagens, ou enquanto autoras, a literatura atual narra o protagonismo feminino, através do exemplo de Malala, uma menina paquistanesa defensora do direito das meninas e mulheres à educação, que pôs sua vida em risco por esta luta, ou mesmo através de Maria da Penha, mulher cearense, que assim como Malala viu sua vida em risco, por conta das ameaças do patriarcado. Maria da Penha é sobrevivente da violência do ex-companheiro e do estado, que negou-lhe a justiça. Sua luta gerou reconhecimento internacional, rendendo ao Brasil uma condenação, e a criação da Lei n. 11.340, que trata de coibir a violência doméstica e familiar, tornando-se uma das 3 melhores leis no combate à violência doméstica no mundo.

A literatura de autoria feminina é tão diversa como qualquer outra, não reduzindo-se a um nicho apenas. Conquista passo a passo o reconhecimento de sua importância para a construção de uma identidade coletiva, mas também pela individualidade de suas histórias. Ler mulheres possibilita conhecer outras perspectivas, reconhecer sujeitos e inspirar mais meninas a serem o que quiserem ser. Seja descrita num conto ou romance, escrevendo uma história em quadrinhos ou uma pesquisa científica, o corpo feminino é luta e resistência.

 

Confira abaixo algumas indicações literárias disponíveis na Rede de Bibliotecas Sesc RJ:

 

Para refletir:

Prêmio Nobel de Literatura: O Prêmio Nobel de Literatura foi criado em 1901 e desde então premia anualmente um escritor ou uma escritora pelo conjunto de sua obra, tendo como critério sua contribuição à literatura mundial. Foram 114 prêmios concedidos, sendo apenas 16 mulheres.

Os 100 livros do século XX segundo Le Monde: Em 1999 o Jornal Francês Le Monde, realizou uma pesquisa com livreiros e jornalistas e definiu uma lista com os 100 títulos mais influentes no século XX. Dos 100 títulos, apenas 12 são de autoria feminina.

Mulheres na ABL: A Academia Brasileira de Letras possui 40 membros efetivos e perpétuos, sendo até 2021 35 membros ativos. Destes, apenas 5 são mulheres.

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