Março Delas - Literatura - Carolina Maria de Jesus

Educação e Literatura Negra: por uma desobediência epistemológica

Os Analistas do Sesc Madureira, Adriano Rocha e Malena Xavier, falam sobre a relação entre a educação e literatura Negra. 

A educação configura-se como um dos principais instrumentos de transformação de uma sociedade, de um povo. Tal transformação é desencadeada dentro do ambiente escolar e deve acontecer de forma comprometida com o desenvolvimento do ser humano na sua integralidade, desenvolvendo valores, comportamentos e hábitos que respeitem as características e diferenças próprias cada grupo social. A história oficial do Brasil reservou ao negro um espaço que começa e termina na escravidão e sobre a civilização negro-africana espalhou-se uma nuvem de preconceito, exotismo e esquecimento, que é reproduzida até hoje quando ainda apontam-se as culturas africanas e indígenas como primitivas.

No mundo e, sobretudo, no contexto brasileiro, experimentamos uma realidade na qual os embates e as bandeiras pautadas pelos movimentos sociais são alcançados parcialmente, porém, muito ainda precisa ser realizado, pois continua-se a negar a legitimidade das lutas e das conquistas dos marginalizados e oprimidos pelo poder hegemônico.

Movimento Negro: a luta por uma educação antirracista

A escola é um local privilegiado para a construção de novas sociabilidades, a escola é a mais importante “agência de letramento” KLEIMAN (1999), é na escola que aprendemos e desenvolvemos o sentimento de respeito para com o próximo, é na escola que aprendemos a conviver em harmonia com nosso semelhante, mas, sobretudo, com os diferentes, é na escola que estabelecemos nossas práticas sociais, fortalecendo nossa identidade. A partir desse lugar, tão importante para a construção de nossas sociabilidades é que o movimento negro vislumbra a possibilidade de implementação de uma educação que assegure e dialogue com as práticas de letramento, levando em consideração as relações étnico-raciais. Sendo a escola uma instituição importante para a sociedade, onde sua função social é a transmissão de conhecimentos das gerações anteriores, ela também se torna um dos principais focos de atuação do movimento negro. O movimento negro, como explica DOMINGUES (2007), é caracterizado por ser um movimento social que luta contra a discriminação racial e como objetivo extinguir a exclusão e a marginalização que negros foram submetidos no sistema educacional, no mercado de trabalho e nos campos políticos e socioculturais. A dinâmica, a bandeira de reivindicações e lutas deste movimento vai existir a partir da questão da “raça” e, por assim dizer, a valorização da identidade racial dos indivíduos negros.

Fruto da luta histórica do Movimento Negro, em janeiro de 2003 temos sancionada pelo então Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, a Lei 10.639, esta lei altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação e obriga o ensino da História e Cultura Africana e Afrobrasileira nos currículos da educação básica. Com o advento desta lei, o Estado brasileiro reconhece que os moldes escolares não tem contribuído para a superação do racismo, pelo contrário, muitas das vezes, a escola com seu currículo e suas práticas eurocentrados, ratificam as desigualdades raciais, para autora Nilma Gomes (2010), a implementação das questões étnico-raciais no currículo escolar, é fruto das tensões raciais denunciadas pelo movimento negro, que não tem desdobramentos apenas no campo educacional, mas, sim, uma questão política que representa a possibilidade de deslocamentos nas estruturas sociais.

 Intelectuais e Literaturas Negras: por outras epistemologias

O processo de ler e escrever é, por assim dizer, um dos elementos mais importantes para que os indivíduos possam ampliar suas possibilidades de inserção na sociedade e de estabelecer sua sociabilidade. Desde o período colonial a literatura no Brasil, um país escravocrata, tem sido um importante instrumento de transmissão de valores, exercendo grande influência na configuração social. Podemos dizer que a literatura assume uma função social estabelecendo o jogo e trama das relações sociais. É preciso resgatar o protagonismo negro e sua contribuição para a construção do Brasil, evidenciando narrativas que desconstruam as práticas e ideologias opressoras e revelem, de fato, a relevante contribuição do negro em diferentes áreas, níveis e espaços sociais. É desta urgência que surge a literatura afro-brasileira ou literatura negra, onde o sujeito negro define sua própria identidade-por vezes deturpada-, assumindo um lugar de apropriação e consciência sobre ser negro numa sociedade de racismo tão arraigado como a nossa.

A Europa deixou de ser o centro do mundo. A história do mundo tem quer ser lida a partir do devir negro, promovendo deslocamentos. O conhecimento eurocentrado tem contribuído para reprodução do racismo, por isso, faz-se necessário, o surgimento de novas narrativas, narrativas que evidenciem a multiplicidade dos povos e sua devida contribuição para o desenvolvimento das sociedades. Conhecimento é poder. Os saberes são instrumentos altamente colonizadores, pois, todo conhecimento é implicado politicamente, é preciso romper com este paradigma. Precisamos cada vez mais, ter acesso ao conhecimento produzido pelos intelectuais negros, pois, o intelectual negro fala por ele, trabalha na perspectiva de ocupar na academia o lugar a que tem direito, o de investigar a sua própria história e de reconta-la do ponto de vista do sujeito afetado, confrontar opiniões e propor novas relações, focadas na diversidade.

A influência de escritores negros não começou recentemente. Pelo contrário, a herança vem do gênese da literatura nacional. Sem a contribuição negra, a literatura brasileira não seria o que é hoje, e não teria o lugar de destaque que possui em meio à tradição literária mundial. Mesmo assim, muitos desses autores que construíram a literatura nacional tiveram sua importância negligenciada, ou ainda, foram vítimas de um processo de “branqueamento” que procurava ilustrá-los como brancos ou “pardos”. Grande exemplo desse último caso é Machado de Assis, reconhecidamente um dos maiores escritores do séc. XX, que teve fotografias manipuladas com o objetivo de clarear sua pele. Até recentemente, não era comum encontrar referências à negritude de Machado de Assis, e esse reconhecimento só foi possível através de muitos anos de luta pela memória histórica.

Outro gênio da literatura negra que viveu durante o período colonial foi Cruz e Sousa; um dos maiores nomes da poesia simbolista do Brasil. Seus versos são até hoje considerados basilares na tradição de poetas brasileiros, influenciando gerações e gerações de autores. Cruz e Sousa traduziu em poesia a vida de um homem negro cujo destino foi diferente da maioria dos demais – tutelado por um grande proprietário branco ainda criança, ele recebeu educação e formação à par da elite da época. Confessou em versos a solidão de um homem negro vivendo num mundo exclusivamente branco. Até hoje, muitos se identificam com suas aflições, tão brilhantemente relatadas em seu trabalho.

Carolina Maria de Jesus também foi uma autora de fundamental importância para nossa cultura. Seu “Quarto de Despejo” é considerado uma obra-prima por revelar, em uma escrita intuitiva, o ponto de vista de uma mulher negra, pobre, morando em uma comunidade em meio a um Brasil que passava por muitas transformações. É com sua lente que vemos tais transformações e a agitação que o país vivia, e suas percepções nos mostram as preocupações reais e imediatas que seu povo possuia, e o abismo entre aquilo que se atribuía ao povo, e aquilo que o povo realmente pensava e sentia.

Luís Gama foi outro grande autor que sofreu muito com o apagamento de sua contribuição. Embora tenha sido um expoente do romantismo do país, e além disso um jornalista e escritor autodidata, que conquistou a própria liberdade e se tornou um homem influente erudito; sequer foi mencionado por Manuel Bandeira em seu “Apresentação da Poesia Brasileira”, mesmo estando na vanguarda do romantismo brasileiro. Até hoje, não recebeu um espaço à altura de sua importância, mesmo tendo influenciado tantos escritores e escritoras.

Na verdade, falta espaço para homenagear a grande lista de escritoras e escritores negros no Brasil: Lima Barreto, Elisa Lucinda, Joel Rufino dos Santos, Maria Firmino dos Reis. Todos sofreram com o preconceito racial, e construíram seus nomes enfrentando o apagamento e o ostracismo. É importante atentar ao passado, resgatar a memória desses autores; mas ainda mais importante que resgatar nomes consagrados é preciso atentar para a literatura negra atualmente no Brasil, que segue mais viva do nunca, fruto do trabalho muitas vezes renegado dos artistas do passado. Conceição Evaristo, por exemplo, é uma romancista que aborda em seu trabalho a discriminação de raça e de gênero; seu livro Ponciá Vivêncio se tornou alvo de pesquisas acadêmicas e publicado no exterior, enquanto que “Olhos d’água” lhe rendeu o prêmio Jabuti. Conceição Evaristo chegou a dizer que muitos autores só passaram a falar com ela após esse prêmio – o que revela que os empecilhos enfrentados pelos negros na literatura persistem.

Além dela, Bianca Santana, autora de “Quando Me Descobri Negra” representa uma nova geração de autoras e traduz em sua escrita o processo de percepção da própria identidade. O livro fez enorme sucesso por abordar um acontecimento familiar a toda mulher negra brasileira que percebe-se, enfim, enquanto tal.

A presença de artistas negros e negras na nossa literatura, como foi demonstrado, não começou hoje e não irá acabar. Mas as dificuldades que são impostas pelo racismo precisam ser vencidas, e a melhor forma de colaborar para a superação das adversidades é destacando o trabalho desses autores e autoras, que honram o passado e plantam sementes de um futuro cada vez menos discriminatório; através de uma arte que, por enfrentar tantas dificuldades, é necessariamente libertadora.

Para ler sobre:

Machado de Assis
Obras disponíveis em domínio público: escolha o tipo de mídia como “texto” e digite o nome do autor.

Cruz e Souza
COUTINHO, Afrânio; SOUSA, J. Galante de. Enciclopédia de literatura brasileira. São Paulo: Global.
LEMINSKI, Paulo. Cruz e Sousa. São Paulo: Brasiliense. Coleção Encanto Radical, n. 24, 79 p.
MENEZES, Raimundo de. Escritores na intimidade. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1949.

Carolina Maria de Jesus
Portal bibliográfico de Carolina Maria de Jesus
Carolina Maria de Jesus: eterna. Completando 60 anos de publicação do livro Quarto de Despejo, obra de escritora segue relevante e atual. 

Luis Gama
GAMA, Luís. Primeiras Trovas Burlescas e Outros Poemas (org. Lígia Ferreira). São Paulo: Martins Fontes, 2000
AZEVEDO, Elciene, Orfeu da Carapinha. A Trajetória de Luís Gama na Imperial Cidade de São Paulo. Campinas, São Paulo: Ed. da Unicamp, 1999
BRAGA-PINTO, César,”The Honor of the Abolitionist and the Shamefulness of Slavery: Raul Pompeia, Luís Gama and Joaquim Nabuco.” Luso-Brazilian Review. 51(2), Dec. 2014. 170-199
CÂMARA, Nelson. O advogado dos escravos – Luis Gama. São Paulo: lettera
SILVA, J. Romão. Luís da Gama e suas Poesias Satíricas. Rio de Janeiro: Ed. Casa do Estudante do Brasil.

Lima Barreto
Marginalidade e canonização
Obras disponíveis em domínio público: escolha o tipo de mídia como “texto” e digite o nome do autor.

Elisa Lucinda
Elisa Lucinda; Rubem AlvesA poesia do encontro. Campinas: Papirus 7 Mares, 2008, p. 15-16.

Joel Rufino dos Santos
Nascido no Rio em 1941, Joel Rufino escreveu mais de 50 livros e se destacou na luta pela democracia e pela cidadania.
SANTOS, Joel Rufino dos. Assim foi (se me parece): livros, polêmicas e alguma memória. Rio de Janeiro: Rocco, 2008. 180p., 21 cm. ISBN 9788532523884.

Maria Firmino dos Reis
Quem foi Maria Firmina dos Reis, considerada a primeira romancista brasileira.

Bianca Santana
SANTANA, Bianca. Quando me descobri. São Paulo: SESI-SP Ed., 2015. 94 p., il., 17 cm. (Quem lê sabe por quê). ISBN 9788582056561.
Lançamento do Livro Vozes insurgentes de mulheres negras.

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