Mediações que subvertem territórios dão o tom do segundo dia de III Seminário Internacional de Mediação Cultural Sesc RJ e II Seminário Nacional Sesc de Arte Educação
De Roraima à Colômbia, artistas e mediadores de territórios diversos compartilharam experiências no evento
No segundo dia do encontro no Auditório da Fecomércio RJ, no Flamengo, três mesas reuniram relatos ricos em diversidade. Artistas, educadores, curadores e pesquisadores deram testemunhos empolgados de iniciativas artísticas e educativas que, cada uma a sua maneira, buscam transformar seus meios.
Pela manhã, abrindo o debate, a mesa “Experiências artísticas contemporâneas” reuniu Emilia Estrada, artista e pesquisadora argentina radicada no Brasil; Catherine Dunga, cofundadora e diretora da organização Kitambo na Colômbia; o músico e escritor Kalaf Epalanga, cofundador do Kizomba Design Museum, em Angola; e a mediadora Marisa Flórido, crítica de arte, curadora e professora da Uerj.
De origem palestina, a argentina Emilia Estrada citou o geógrafo Milton Santos e sua análise de que “para os migrantes, a memória é inútil”, e traçou um paralelo com sua própria experiência como imigrante no Brasil.
Outro olhar sobre migrações conduziu a fala da gestora cultural colombiana Catherine Dunga. Dunga é cofundadora e diretora da organização Kitambo, que fortalece a colaboração entre pensadores, escritores e artistas do continente africano, da América Latina e da diáspora africana. “Kitambo tem um modelo de educação inclusivo, antirracista, decolonial e de reparação histórica por meio das artes” – conceituou Dunga, que ressignifica obras de arte clássicas, como a ópera “A flauta mágica” de Mozart ou telas de Leonardo Da Vinci, com pessoas e materiais latinos e africanos.
O escritor e músico angolano Kalaf Epalanga, por sua vez, fez uma fala-performance em sua língua, umbundu. Disse que se apresenta como “expatriado, e não imigrante” porque os europeus quando vão para o Sul Global se apresentam como expatriados e ele também diz que está na Europa para melhorar e ensinar à Europa: “as artes têm o papel de redefinir fronteiras”, defendeu.
Para Epalanga, “um dos desafios de mediação cultural é fugir das armadilhas do mercado e aumentar a diversidade, e amplificar as vozes locais sem esvaziá-las de seu contexto” – analisou.
O evento seguiu à tarde com a mesa “Como a mediação cultural pode desafiar e transcender as fronteiras convencionais entre vida e arte?”, com o fotógrafo pesquisador das imagens da Maré Francisco Valdean; o doutorando em Artes Visuais pela UFMG Bruno Vilela; Augusto Leal, artista e cocriador do MASF-BA, em Simões Filho; o diplomata e diretor executivo do Medellín Global, Sérgio Escobar; e o educador indígena Hierú Pataxó.
Cada palestrante compartilhou projetos e iniciativas que transformaram sua comunidade, como o Museu da Imagem Itinerante da Maré, um museu portátil em formato de caixa recheada de fotografias; a Área Criativa, centro cultural que Bruno Vilela construiu em Pedra Azul (MG), cidade de menos de 30 mil habitantes, e as bibliotecas e centros culturais de Medellín, na Colômbia, que Sérgio Escobar contou terem renovado completamente a vida dos moradores da cidade – antes, símbolo internacional de violência e abandono, em menos de 20 anos.
Uma simples escadaria de dois lances na principal avenida de Simões Filho, no interior da Bahia, atraiu o olhar do artista Augusto Leal, mestre em artes visuais pela Universidade Federal da Bahia. Ainda na adolescência, Leal se incomodava com a falta de espaços e atividades culturais no município, que aparecia com frequência em rankings como município mais violento do Brasil.
O artista criou intervenções artísticas pela cidade, mas foi depois de estudar Belas Artes e viver a cultura pujante de Salvador que percebeu: “A gente se acostuma com a precariedade quando não tem acesso a outros tipos de experiência. Foi quando entendi que precisava criar essas experiências de fruição artística e cultural” – lembrou.
Depois de conhecer presencialmente museus e espaços culturais de São Paulo, Leal reuniu a vivência da própria cidade com uma análise crítica dos grandes museus do país – que considerou “espaços de passagem”: “Vi uma escada perto da minha casa e pensei: se o museu, que deveria ser um lugar de permanência, virou um lugar de passagem, vou transformar essa escada, que é de passagem, em lugar de permanência. Vou criar um museu nela”.
Com a ajuda da comunidade, o artista pintou a escadaria e a transmutou no Museu de Arte de Simões Filho, que já realizou exposições de vários artistas locais – sempre com cachê para os artistas, curadoria, texto expositivo e até inauguração com vernissage. Em 2023, o MASF foi vencedor do Prêmio Museu é o Mundo.
Na sequência, foi a vez de um emocionante relato do professor Hierú Pataxó, da aldeia Juerana, em Porto Seguro (BA), estudante de Formação Intercultural para Educadores Indígenas na Faculdade de Educação da UFMG. Pataxó, que é membro do grupo de Etnoturismo de Porto Seguro, apresentou a cosmologia de seu povo, “o conto de txópay e niamisu”, que trata da importância de compartilhar conhecimento para a continuidade de um povo.
“O primeiro cacique da aldeia Coroa Vermelha, Benedito Cacique, diz que ‘pobre é aquele que não tem comunidade’, e isso é um princípio não só para os Pataxós, mas para todas as comunidades” – refletiu. O professor ressaltou a importância da oralidade para os indígenas, que não contavam com língua escrita.
Pataxó lembrou os dois marcos transformaram seu povo, o Massacre do Cacau, no fim do século XIX, quando os indígenas foram caçados de diversas formas em meio à chegada das fazendas de cacau; e o Fogo de 1951, um ato genocida das forças policiais depois de quase uma década da criação do Parque Nacional do Monte Pascoal, quando aldeias inteiras foram impedidas de plantar e usar as terras convertidas no parque e os conflitos escalaram até as forças de segurança causarem um grande incêndio criminoso.
Os massacres levaram os Pataxós a se espalharem pelo território, mas também a deixarem de transmitir sua cultura para os descendentes, por medo de perseguição. É no resgate dessa oralidade e dessa cultura que Pataxó trabalha hoje: “A arte é uma forma de resistência para os Pataxó”. O educador se levantou, empunhando um maracá, e ensinou um canto de resistência para o público, que o aplaudiu emocionado.
Detalhando seu trabalho com educação indígena, Pataxó falou sobre ensino contracolonial, com a produção de materiais didáticos próprios; um calendário especializado, com os tempos de plantar e colher; e as tecnologias de pescaria. “Na escola indígena, uma aula para as crianças pode ser ir ao rio e tomar banho no rio, porque isso ensina. Pode não ser o ensinamento que o sistema se interessa que você saiba, mas é um ensinamento de ser com outro” – ponderou.
Na última mesa do dia, “Mediação Cultural para quem? Como? Por quê?”, foram abordadas experiências com mediação cultural em diferentes ambientes, plataformas (inclusive on-line) e territórios.
A catarinense Ida Mara Freire, especialista em Dança Cênica, trouxe para a discussão suas vivências com dança e sua pesquisa com pessoas cegas, em 2001 e 2011, em residência artística na Cidade do Cabo, África do Sul.
“As experiências com a cegueira me fizeram pensar que a mediação cultural é uma questão de contato, e o contato faz toda a diferença para as pessoas cegas. As instituições culturais de referência precisam atender todos da mesma forma, democraticamente” – analisou.
Outro destaque da mesa, Rafael Pinto, professor de arte, artista visual, realizador audiovisual, curador e produtor cultural de Roraima, alertou para os estigmas e estereótipos que o Sudeste – e até geradores de inteligência artificial – difundem quanto aos estados do Norte do Brasil: “Estamos de várias formas isolados, e esse isolamento é proposital” – queixou-se.
Quando foi trabalhar em uma escola de Boa Vista, capital roraimense, o educador notou que as paredes da escola eram repletas de grafitos, mensagens de diversos teores. Rafael passou a classificá-los e criou o projeto “Se essa escola fosse minha também”, que acabou se tornando sua pesquisa de doutorado. Com a ajuda dos alunos, está pintando os muros da escola como um mural de recados, onde podem se expressar como quiser.
Fechando a noite e o último dia de palestras abertas ao público, o historiador e pesquisador Marcos Tolentino, baiano radicado em São Paulo, discorreu sobre seu Acervo Bajubá, projeto de registro de memórias das comunidades LGBT+ brasileiras. A coleção conta com cerca de 4 mil itens em materialidades diversas, que registram a história da diversidade sexual e a pluralidade de expressões de gênero no Brasil.